segunda-feira, 24 de setembro de 2007

A "Fantástica" surrealidade da Globo



Esta é a Elvira. Isto é Luanda.
Só uma fortíssima crise de asma, com direito a falta de ar e tudo, me deixou na frente do Fantástico neste domingo. Não que eu assista a "revista" semanal. Não assisto e não gosto. Mas porque meu irmão, que me fazia companhia enquanto eu não morria de falta de ar, ligou a Tv. Aí só faltei ter uma apoplexia ao final de uma bobagem com a Regina Casé, chamada Central Periferia. A chamada era sobre Angola, o que despertou minha curiosidade e fiquei vendo aquele completo nonsense até o fim.
A Regina Casé, toda soltinha, como se fosse a coisa mais natural do mundo, "garantir" que as novelas, especialmente no momento, "Paraiso Tropical", são o que há de mais importante culturalmente em Luanda.
A matéria (se é que se pode chamar aquilo de) foi um festival de besteiras. Um bairro todo às escuras, mas com uma turminha à frente de uma televisão movida a gerador, a assistir, no meio da rua, ansiosamente, o destino da Bebel, do Olavo e nem sei de quem mais. Como se aquilo fosse uma realidade ampla, extensa, resultado de um movimento cultural naquela capital. Pra gente que sabe como é feita a produção de reportagens, programas e outros formatos exibidos pelas tvs, ficou muito claro que a Globo carregou na mão.
Aliás, como em tudo mais que se relaciona com suas novelas ( e olha que tem até coisa boa!), onde um mundinho, geralmente do Rio, vira toda a realidade nacional. E agora a Globo exporta realidade para Angola.
A Casé, coitada, mostrou a moda nas "ruas" de Luanda (uma única mocinha vestia um troço horroroso parecendo um "colant"), copiada do figurino de Bebel, como se a pobreza do país permitisse às pessoas se darem ao luxo de seguir modas e modas. E a incongruência era maior, ao mostrar esta "revolução cultural, mania nacional" num bairro muito pobre de Luanda.
O que a Globo deveria ter mostrado é a miséria daquele povo que passou 40 anos em guerra civil, tem ainda 12 milhões de minas terrestres em seu território a impedir qualquer atividade agrícola; tem 58% da população completamente analfabeta e só 16% dessa mesma gente servida por saneamento básico, certamente aqueles ricos que moram em condomínios afastados da capital, longe do caos do trânsito, das ruas esburacadas, dos esgotos, dos mosquitos, do lixo acumulado e das feiras de alimentos em meio à imundicie.
E sem falar na falta de assistência médica, nas epidemias.
E ainda nos atentados, vez por outra, da Unita, que ainda tem gente no interior, sobretudo nas províncias ricas em diamante (Luzamba, no Leste), infernizando a população civil.
Angola é um país com ricas jazidas de diamante e petróleo, exploradas por poucos países imperialistas (retrato fiel, ainda que de outro país, feito em "Diamantes de Sangue")- e de uma pobreza inacreditável.
De suas tribos saíram três milhões de escravos para o Brasil, nossos antepassados, pois.
E isso tudo pode ser sabido de outros pontos de vista, que não o da Globo, que quer nos fazer crer que "a população" de Luanda morre de amores por novelas.
E um desses pontos de vista é o dos padres salesianos, que mantêm uma missão humanitária lá, onde minha irmã Elvira esteve há dois anos.
Foi como voluntária para a missão salesiana num bairro com certeza mais pobre do que o mostrado pela Globo, porque até se chama Lixão. E lá comeu da comida dos nativos (um peixe gosmento, segundo ela, mas que acabou descendo suavemente, depois que fez uma prece a Deus, para lhe dar coragem de comer "aquilo").
E - jornalista -, ensinou-lhes a preparar seu próprio informativo, com sua linguagem, com sua realidade, com suas expectativas; eles criando, ilustrando e ensinando a ela as diferenças entre "peixe homem e peixe mulher". E ensinando a ela uma enorme riqueza cultural, refletida em muitas coisas, entre elas, nas vestes femininas feitas simplesmente de um pano longo enrolado no corpo, de estampas e coloridos inimagináveis por globos e bebéis; e, principalmente, a alegria de suas crianças, que apesar da fome, das doenças, brincam na incoerente, para nós adultos, felicidade compartilhada com suas mães.

4 comentários:

Anônimo disse...

Muito bom!
Você deveria mandar essa mensagem pra Central Globo de Producarias...
Uma matéria produzida dessa realmente é de doer...
Dou graças aos céus que não trabalho em TV para ter que fazer pessoas passarem por um ridículo desse tipo... Inclusive, tenho reparado que as matérias que dizem ser jornalísticas sobre comportamento estão cada vez mais comuns.. expondo a intimidade das famílias, simulando situações entre pais e filhos, casais, amigos etc que só ocorrem entre quatro paredes, nunca na frente de uma equipe de tv - pelo menos não com naturalidade. Como as pessoas se sujeitam a isso? São cenas que constragem quem está vendo, quem é da família e todo o resto.
Mas, essa é a vida. Ô, tristeza...

Anônimo disse...

Independente da nossa moral pequeno-burguesa, a realidade das ruas de Luanda é realmente chocante. Mas todo ser humano - em qualquer parte do planeta - tem necessidade de uma válvula de escape. Em Angola, esse instrumento poderia ser novela mexicana ou enlatados de Hollywood, mas são as novelas da Globo. Não acho que isso seja uma coisa triste ou inconcebível. Para mim, é perfeitamente natural: todos temos necessidade de nos refugiar no simbólico. A classe média pode pagar pra ter TV a cabo. Em Angola, o jeito é ver novela na praça mesmo...

Anônimo disse...

Li um dia desses que a audiência do Fantástico está em queda livre. Será que a gente descobre o motivo?

E quanto à Regina e suas periferias, sempre achei aquilo trash. Tudo bem que todo lugar tem coisas e pessoas boas, mas o quadro que ela pinta das favelas é de fazer inveja. Acho que quem mora na Vieira Souto tem ímpetos de largar tudo e ir viver na Rocinha depois de ver como é bom ser pobre.

Anônimo disse...

Acho que a Globo deveria exportar um pouco de cultura para Angola, ao invés de novelas. O povo está se contorcendo para melhorar seu sistema de ensino, que é um dos piores do mundo, e o que a toda poderosa emissora faz é mandar mais porcaria pra lá.
Apesar da pobreza, o povo sabe o que quer e, pode ter certeza, não é novela.